« Home | 18 de Dezembro de 2004 » | E porque não acabar com o Estado Laico? » | Ah, faltava falar da crise » | Estou então » | Disparate e crime » | 17 de Dezembro de 2004 » | Onde vais CDS? » | 16 de Dezembro de 2004 » | Para pôr alguns pontos nos is » | 15 de Dezembro de 2004 »

quinta-feira, dezembro 18, 2008

Natal com cheiro a erva doce

Um dia, há um som, um cheiro que nos transporta de novo a lugares e a momentos que já tinhamos aconchegado, julgávamos que definitivamente, num qualquer lugar dentro de nós.

Na escada, ao sair para colocar o lixo na rua, há um cheiro que a leva ao que foi. Misturado com o frio, ela está de novo a poucos quilómetros do Fundão e é Natal. Há uma ponta que nunca recuperou dos poucos Natais de então. Receosa de, ao soltá-la, voltar a sentir a dor das perdas irreversíveis que foi precisando amainar, nos seus Natais não voltou a haver nunca mais o cheiro a erva doce que lhe invade hoje as escadas. "Na minha terra, fazemos broas nos Santos", dissera-lhe. "Aqui, no Natal, também há sempre broas...não sei se aqui na terra, se aqui em casa, mas há sempre broas no Natal." (há que tempos não ousava ouvir-lhe de novo palavras).
...
Nos poucos momentos em que o Mundo lhes pertenceu, em que acreditou ser capaz de o guardar nele, havia, nos Natais, um cheiro a erva-doce. Como o das escadas. Não sabe se era em todas as casas. Na casa, em que o cheiro dos queijos de cabra que se guardavam no quarto a impediam de adormecer, nos Natais cheirava a erva-doce.

Com o tempo foi esquecendo os pormenores. Não sabe como iam, quando iam. O que faziam enquanto lá estavam. Não recorda, sequer, a forma da sala onde ceávam. Na ponta solta que resta desses dias, ficou o cheiro a erva-doce, o arroz doce feito de propósito para ela "ela adora arroz doce" dizias e ela, sem coragem de te contrariar, tentava conseguir comer arroz-doce com aquele sabor acre do leite de cabra...enchia-o de canela na tentativa de que não notasses.
Daqueles Natais, pois, as pontas são agora, apenas, feitas de cheiros e sabores. Pelo meio, hoje, sorrateiramente, vem-se-lhes juntar o sabor salgado de uma lagrimita que sai, quando os recorda lá.

Muito antes de ele ter partido tinham acabado os Natais com sabor a erva-doce. Mas, agora, ao subir as escadas, voltou-lhe, por uns momentos, aquele aperto de quando a pergunta ainda surge agreste, anos e anos depois deles, anos e anos depois de ti: porque não permitiste que o cheiro a erva-doce te segurasse cá?
As pontas soltas do passado podem enrolar-se en cantinhos de nós, ponderou. Um dia ou outro, soltar-se-ão. A maioria das vezes a ternura acabou por acalmar a dor. Afinal, acaba-se por aprender a viver com pontas soltas, pensou, enquanto fechava a porta ao cheiro a erva-doce.

Etiquetas:

0Comenta Este Post

Enviar um comentário

<< Home