Em forma de areia
Durante um momento, enquanto esperava pela hora de voltar, sentou-se no paredão em frente à Baía. Durante toda a manhã, pelas ruas em que o Mar só se vislumbra ao longe, nunca encontrou qualquer floquito de memória(s). Não é assim. Memórias encontrou, apenas, por qualquer mecanismo que se cria, daqueles que nos permitem sobreviver a tudo, até às perdas e às partidas, era como se nada do que via à volta lá estivesse então. Casas. Ruas. Sons. Nada.
Sabia da Estação, onde só duas ou três vezes ao dia (há muito que é assim, disseram-lhe e no há muito, deveria já caber, os dias de então, pensou) se ouve o silvo dos combóios, mas sabia dela, não era ela. Não era mesma Estação com uma taberna de balcão molhado e cheiro a aguardente, onde pela primeira vez, como se as coincidências andassem em carris ou se embriagassem em tabernas de aldeia, se tinham cruzado.
Só, então, com a Baía ao fundo, finalmente algo lhe pareceu familiar. Desceu as escadas que a levavam à areia e tocou-lhe. Era a mesma areia.
Por momentos, vinte e cinco anos depois, a areia da Baía, esperava-a para lhe sossegar as partidas.
Ligou vezes sem conta o telemóvel como que a precisar de ser retirada da ausência de outras memórias senão a da areia. As vozes de hoje, as suas vozes de hoje, retiravam-lhe o torpôr das não memórias de quase tudo.
O vento, ainda frio de Junho, arrepiou-a. Levantou os olhos da areia, da mesma da altura da tabernita ao lado da estação, e olhou em volta. Nada. Nada mais ali havia de então.
Por momentos olhou-se. Viu-se, como se a areia, alguma vez, pudesse tornar-se espelho. E teve a certeza. Nada. Nada mais ali havia de então.
Saiu sossegada. O encontro de então terminara há muito. Duro fim porque definitivo. Sem volta. Mas apaziguado.
Agora sabe que, quando lá voltar em breve, a areia será a areia da Baía de S. Martinho de Junho de 2007. A de 83, onde lhe começou a certeza que à incapacidade de mudar o Mundo, teria que começar a aprender a juntar a impossiblidade de mudar as pessoas, mesmo as que se ama muito, levou-a aquele sopro de vento que lhe fez aconchegar o casaco. Melhor assim. Os fantasmas, mesmo os de nós, devem ser vividos em solidão. Egoísmo de fantasma.
Claro que lhe ficou a faltar o anoitecer. Receia que haja fantasmas, mesmo os de si, que teimem em voltar num anoitecer. Não tocará na areia da Baía em nenhum anoitecer. Não vá o diabo tecê-las.
Etiquetas: Isabel Faria
4Comenta Este Post
Sem palavras pois elas seriam de todo desnecessárias.
Um grande abraço amiga, do tamanho do mar que banha a areia.
Ups, grande o abraço...
Já passa.
(Tal como Daniel e António dizem)
Não as há...
Mas como é preciso vincar, dizer que aqui passámos, dizer que as lemos, quase ousar que conseguimos sentir pelo poder das ditas...
Aqui fica um beijinho
Bem, os abraços são tantos que o meu já sobra.
Mas não há ninguém como tu para falares de emoções e de memórias. E nos fazeres partilhá-las. Obrigada por essa partilha, amiga.
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