Memórias (repescadas) dos dias negros
Os homens e as mulheres que diariamente abandonavam o País à procura de “sorte noutras paragens”, não partiam pela aventura. A grande maioria deles nem partia em busca da Liberdade que o Regime lhes negava. Partia em busca do pão, que aqui não conseguia ter.
Anos antes, menina ainda, quando o meu pai foi preso, eu e a minha mãe ficámos sem um tostão para comer. Os movimentos de solidariedade que então se criavam à volta das famílias dos presos políticos, não eram suficientes em terras onde a resistência era grande, mas a repressão era, ainda, maior. Não tivessem sido os meus avós a alimentarem-nos e não teríamos podido sobreviver, durante aqueles tempos. Já recordei, aqui, um dia quando ao colo da minha mãe, descobri uma moeda preta, pequenina, esquecida e perdida debaixo da camilha cor de vinho. Ainda hoje, recordo o meu salto de alegria e os olhos molhados da minha mãe. No outro dia poderíamos comprar pão, sem ter que recorrer aos meus avós.
Durante muitos anos, já o meu pai em liberdade, lembro-me que ainda pagámos as dívidas que a minha mãe tinha contraído a familiares e amigos, para o podermos ir visitar a Caxias.
Quando o meu pai foi para França, o que ganhava no emprego e nos biscates de marceneiro que fazia em casa, de manhãzinha e até a altas horas da noite, não nos davam para sobreviver.
Eu frequentava, então, um colégio particular, na minha terra. Não havia outra hipótese. Não havia ensino público. Para pagar as mensalidades, tivemos que recorrer à ajuda (nos momentos de maior indignação o meu pai usava sempre “à esmola”) da minha madrinha rica. Até entrar para o Liceu foi sempre ela que me pagou as mensalidades. Apesar do que isso na altura doía, guardo ainda hoje uma gratidão, que algumas vezes me incomoda, outras me revolta, mas a maioria me enternece.
Um dia, andava no colégio e tive um problema de saúde. Era extremamente nervosa e comecei a sofrer consequênciais físicas disso. Uma colite modificava os meus dias e obrigou os meus pais a terem que recorrer a um médico particular (não havia outros…). Tivemos que adiar, no entanto, o tratamento. Acabaria por ser com o primeiro dinheiro que o meu pai enviaria de França que acabei por ir tratar-me a Santarém. Ainda hoje penso que foi a necessidade urgente desse tratamento que levou o meu pai a decidir partir daquela forma urgente…
Nas ruas encontrava, crescia com outros filhos de outros homens e mulheres sem trabalho e sem pão.
As “malsarias”, os meloais, a emigração. acabariam por mudar totalmente as nossas vidas.
Quando me falam de antes do 25 de Abril, como se a memória se tivesse apagado, lembro tudo o que há a fazer, é certo. Mas, sobretudo, não esqueço. Nem a moeda perdida, nem a vergonha de ir buscar o envelope à minha madrinha, nem a voz assustada e desesperada da minha mãe a perguntar ao médico de Santarém se o tratamento podia aguardar uma ou duas semanas…
Etiquetas: Isabel Faria
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