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quinta-feira, novembro 01, 2007

Bolinhos (roubado ao Troll, ali mais para trás)

Faz hoje dois anos deixei este post aqui no Troll. Estava aqui há muito pouco tempo e as palavras parece que saíam. Agora, às vezes, não. Não creio que tenha a ver com o Troll, nem sequer com o tempo. É um problema de palavras, mesmo. Depois de ditas, deixam de nos pertencer. Se calhar, às vezes, gastam-se. Ou entram em greve. Ou ficam presas num ramo qualquer. Cá dentro.
Já algumas vezes pesquei textos meus que por aí fui deixando. Faço-o sempre algo comprometida. Creio que a razão é sempre essa. As palavras ditas deixam de nos pertencer. As histórias, mesmo as nossas, também. Nunca sei se tenho o direito de voltar a pegar em palavras ou em histórias que deixaram de ser minhas. Não sei, mas, às vezes, apetece-me. Falo comigo mais tarde àcerca disso. E, se for caso disso, ajustamos contas.


Deve ser assim em muitas famílias. Havia a parte pobre e a outra. A outra, por qualquer razão, tinha herdado terras. Tinha ido ao liceu e tinha comprado carros. A pobre, tinha muitas crianças e uma sardinha era dividida por três. O meu pai pertencia à da sardinha. Eram nove irmãos e a minha avó cegara com o nascimento da última menina. Com o decorrer dos tempos, nós, os filhos dos da sardinha, fomos, esporadicamente, tendo contacto com os do outro lado. Por tradição, cada um de nós tinha sempre um padrinho ou uma madrinha, dos que tinham as terras e andavam de carro. Já não comíamos uma sardinha, já não tínhamos muitos irmãos, acabámos por ir todos ao liceu, mas carro só muito mais tarde. No dia de Todos os Santos eu a as minhas primas, filhas dos meus tios que partilharam a sardinha com o meu pai, vestíamos a roupa mais nova e íamos pedir os bolinhos à madrinha rica. A madrinha rica era a mãe dos padrinhos, mesmo. Os que nos tinham agarrado ao colo no dia do baptizado. Quando batíamos à porta, vinha sempre o cão enorme e a empregada, com um avental aos quadradinhos e uma coisa giríssima na cabeça. Sentávamo-nos quietinhas no sofá da sala e aparecia, então, de cabelo completamente branco, enrolado num carrapito e de bengala, a madrinha Benvinda. Cada ano que passava as palavras repetiam-se “Estás tão grande e tão loirinha. Tens uns caracóis cada vez mais bonitos”. “Estás tão grande e tão bonita. Parece que estás mais loura, agora. E tens os olhos mais azuis”. “Estás tão grande”. Confesso que naquelas alturas me questionava sempre porque é que os meus pais não me fizeram loura de olhos azuis. E já agora de caracóis e o resto. Deve ter sido porque ela nunca me achou loura e bonita que apesar de sair de lá com um saco cheio de nozes e pinhões e broas e ainda com uma moeda, que, muito antes das minhas primas, deixei de lá ir pedir os bolinhos. Elas nunca perceberam muito bem porquê e os meus pais também não. Fica aqui a confissão pública. Tivessem-me feito loura, bonita, de caracóis e de olhos azuis e tinham comido castanhas e passas de uva, durante mais uns anos.
...
Assim, tive que esperar alguns anos para ficar loura, olhos azuis só de lentes de contacto e fazem-me alergia, caracóis ainda fiz algumas vezes quando usava camisas de flanela aos quadrados e a minha madrinha rica não me falava porque eu era comunista e quanto ao resto…olhem, faz-se o que se pode. Aquela história do ser por dentro e assim…
Entretanto, há uns anos, já não usava camisa de flanela, mas ainda era comunista (para aquela parte da família sou e serei sempre comunista...), encontrei-a, muito velhinha. Ia com o meu filho. Olhou-o e disse “Que lindo. Tem uns olhos verdes tão bonitos…e tu estás loura e tão bonita…”. Como tudo correspondia à realidade, o meu filho é lindo, tem olhos verdes, eu estou loura, presumi que o “tão bonita” não tinha a ver com problemas de vista e que era aquela história do por dentro…e até me arrependi de não ter lá ido mais anos. Afinal, eu não tinha que ouvir tudo e assim perdi uns bolinhos e umas moeditas...
Se pudesse voltar atrás... O pior é o cão...e parece que já não há “criada”. Paciência, vou ao Pingo Doce. E vou loura, cá por causa das coisas.

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2Comenta Este Post

At 11/02/2007 12:25 da manhã, Blogger samuel escreveu...

Esta estória é bonita, loura de olhos incrivelmente azuis e com longos cachos de caracóis!

 
At 11/02/2007 2:29 da tarde, Blogger Isabel Faria escreveu...

Obrigado Samuel.
Mas com essa dos cachos de caracóis deu-me aqui uma vontade de ir perguntar aos meus pais, se eles não poderiam ter feito um esforcito...

 

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