A arrepiante nudez de sentimentos
O Daniel Oliveira deixou este post no Arrastão. Não tenho a certeza se concordo com ele, pois parece-me que o Daniel, explica o chocante comportamento dos vareneantes, que se alheiam da morte, ainda por cima da morte de duas crianças, mesmo ali a seu lado, com o facto de se tratar de duas crianças ciganas. Apesar de saber o que se passou em Nápoles, ainda há bem pouco tempo, em acampamentos de ciganos, sinceramente, creio que estas imagens ultrapassam em muito qualquer tipo de comportamento racista. Acho que são imagens ainda mais profundas. Imagens que mostram ainda mais dentro. E como vamos perdendo a nossa sensibilidade e humanidade.
A imagem recordou-me mais uma quantidade delas, que, recentemente, invadiram o nosso sossego.
O video da morte em directo de uma doente num hospital psiquiátrico nos EUA, perante a indiferença de doentes e de seguranças. A imagem de um atropelamento de um idoso, também algures nos EUA, em que, perante o corpo inerte no meio da via, os automobilistas se desviavam para não pisar, sem pararem, sem verificarem se o homem estava vivo, se precisava de ajuda, sem afrouxarem o carro. A imagem de um jovem que agide uma passageira no metro, creio que em Barcelona, sem que ninguém se mexa, sem que se ouse levantar os olhos do chão.
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Lembra-me ainda, há muitos anos, uma imagem que para sempre me marcou. Na altura, tratava-se de um filme, e, para nosso conforto e sossego, todos que a viram a devem ter visto como uma imagem brutal de um filme do Fassbinder. Vi-a há muito tempo. Dela, apenas, recordo que era um homem que morria numa entrada do metropolitiano e que as pessoas apressadas, centenas de pessoas aporessadas, se desviavam para nele não tropeçar. Sem um momento de hesitação. Um gesto. Creio que era o "Direito do mais forte à Liberdade", se a memória não me atraiçoa.
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A realidade apenas se encarregou de ultrapassar a ficção. O racismo que poderia justificar as imagens que o Daniel publica, é, apenas, um dos sintomas de um mal bem mais profundo. Um dia, fomos deixando de ser homens e mulheres. De sentir. De ter respeito, constrangimento, dor, mágoa perante o sofrimento e a morte dos outros. Não faço idéia se tem a ver com a banalização da morte que nos entra todos os dias casa adentro. Sei que sem sentimentos não somos seres humanos. A imagem que o Daniel Olivera publica mostra-nos, na altura, em que já deixámos de sentir. É arrepiante. E é constrangedor. Afinal sair para a rua nu, era suposto criar, nos outros, algum mal-estar...o problema é que parece que cria cada vez menos. E isso arrepia. Porque a nudez dos sentimentos nada tem de belo. A outra talvez continue a incomodar. Esta banalizou-se, democratizou-se. Cada vez mais, somos seres humanos coxos, ou mesmo vazios, de sentimentos. Cada vez menos somos seres humanos. A foto que o Arrastão reproduz mostra dois de nós nessa arrepiante nudez. Pelo menos, parece que ainda há quem ainda se choque. Será de perguntar, até quando?
Etiquetas: Isabel Faria
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