Quem pensa ela que é?
Parece que os deuses condenaram Sísifo a incessantemente rolar uma pedra até o topo de uma montanha. Quando chegava ao topo da montanha, a pedra vencida pelo seu próprio peso, voltava a cair pela montanha e Sísifo voltava a empurrar a pedra até ao cimo da montanha...que vencida pelo seu peso...
A vida armada em Deusa, faz de nós Sísifos. Há alturas em que penso que a minha vida tem mesmo a mania que é uma Deusa má e vingativa e decidiu mesmo, sei lá eu o que fiz para lhe provocar tal ira, colocar-me, incessantemente, à frente, pedras enormes que eu, teimosa e imprudentemente, teimo em empurrar pela montanha acima...(é engraçado nunca ter pensado que talvez haja qualquer maneira de, simplesmente, me sentar ao lado da pedra e esperar que a Deusa desista...).
Foi assim, há muitos anos, quando tive que vencer o desencanto. O desencanto, asseguro-vos, era uma pedra imensa. Rude e cinzenta. Depois, anos mais tarde, transforma-se (as pedras que a vida com mania que é Deusa coloca à nossa frente, vão mudando de cor e de forma...apenas a montanha não...nem o peso) em enorme pedra branca a que, para simplificar, chamei derrota, e que teve a forma de morte anunciada de alguém que amava muito.
Quando voltei da Clinica de S.Miguel, desci a Estados Unidos da América e decidi ter o meu filho "vê ali a cabecita?, disse a médica sem saber o tamanho da montanha) à pedra dei o nome de medo. Ah, mas por estranho que pareça, a pedra com nome de medo, foi de todas as que teve uma cor mais bela. Ao longo dos anos, quando, por exemplo, sozinha, vi a porta de vidro translúcido do Hospital dos Capuchos se fechar e através dele vi a sombra da minha vida a afastar-se, cada vez mais pequenino, até o perder de vista, a pedra, chamada medo, teve a sua forma mais terrivel. Mas os dois, lá a colocamos de novo em cima da montanha. Aliás, chegada aqui, o que me parece mesmo é que há duas pedras...esta, é a que a Deusa, distraida, lá tem deixado ficar. A que faz com que tudo, mesmo as pedras duras valham, afinal, o esforço e eu consiga recuperar do cansaço. E até perdeu o nome de medo.
Aliás, não fosse a pedra que a Deusa distraída se esqueceu de enviar de volta, montanha abaixo, e como estaria eu hoje com esta pedra enorme no caminho?
...Hoje a pedra que a Deusa teimosa coloca à minha frente tem forma de perda. De perda de um Mar grande. Um Mar grande cheio de risos, de olhares, de ondas, de gestos, de peixes, de palavras, de conchas, de confidências, de estrelas do mar, de cumplicidades.
Antes de a carregar, montanha acima, preciso vencer a mágoa e recuperar a confiança. Tarefas árduas. Mas se o conseguir, a pedra chamar-se-á recomeço e voltará a ser azul. Talvez não Mar, que há que respeitar a vontade dos Mares, mas azul.
...
Mas aposto com a vida que pensa que é Deusa e que se diverte em me condenar a ser Sisifo a vida toda, que mais uma vez eu venço a montanha.
Claro que sei que, matreira como ela é, a vida volta a pôr a pedra cá em baixo...mas sou gaja para não lhe facilitar a vida. Ela que se enxergue.
Ah, e pela primeira e única vez, só para a chatear, à vida que tem a mania que é Deusa, assim mesmo para a chatear, até lhe confesso que o Mar, afinal, mudava de nome. Chamava-se Amor, chamava-se Amizade, chamava-se Paixão, chamava-se Entrega, chamava-se os nomes todos que cada momento lhe deu. E a gaja que nunquinha o descobriu. Toma lá e embrulha, Deusa teimosa.
Etiquetas: Isabel Faria
13Comenta Este Post
São estes post que me fazem inveja de não saber escrever assim.
Lindo.
Obrigado Isabel.
Isabel parabéns pelo excelente post. Vê-se que aprendeste cedo a escrever e que tiveste uma grande biblioteca em tua casa.
Não te invejo. A inveja é uma coisa muito má para sentirmos por outra pessoa. Espero que o convívio entre os autores deste blog um dia conheça melhores dias.
Ora ter INVEJA de um colega, que coisa tão feia!!!!
Arménio, já o Troll terá desaparecido há muito, já não poderemos, pois, por cá ter a sua companhia e ainda o termo inveja vindo do Daniel, não será uma coisa má.
Entre amigos não há coisas más...porque entre amigos as palavras t~em o significado que lhes quisermos dar.Somos nós que fazemos as nossas palavras, entre amigos.
Sabe que é assim,não sabe?
Tive que ler 2 vezes.
Está magnífico. Essa ultima pedra em que te escondes facilmente a transportarás para o cume da montanha.
Daniel, sabes bem que só escrevo assim, quando a montanha parece intrasponível...acho que espreitá-la cá de baixo,nos pedacitos que a pedra deixa ver...me inspira.
Obrigado a ti,Daniel.
Um post Diamante.
O Sísifo foi castigado (como os grandes rebeldes - Promoteu, Tântalo, etc) afinal por desafiar os Deuses. E a verdade é que ganharam os primeiros rounds... No caso do Sísifo enganou a morte duas vezes e acabou por morrer... de velho! Pronto, lá teve de pagar o atrevimento que Deus é Deus e não suporta essas coisas.
Mas Isabel, a verdade é que num certo sentido, ao contrário da tua metáfora tu vais conhecendo as pedras, como dizes. Não é a mesma! Ou seja, a gente vai aprendendo com a vida.
Se calhar, a meio da subida ias tendo umas ideias de que se calhar ela não ficaria lá em cima.
Mas há mais pedras.
E enquanto se sobe com ela, exactamente por se ser humana, acreditamos que a pedra é diferente. E até é.
E só uma coisa - chegaste lá acima, a pedra rolou cá para baixo mas porque raio não ficas tu lá em cima a ver as vistas...? Deixa lá o raio da pedra e fica a ver nascer o sol!!!!
é inveja mesmo o que sinto, Isabel. Não me custa reconhecer. Parabéns. Lindo!
Anónimo, facilmente? Não direi facilmente. Mas lá chegará, sim.
muito bonito Isabel.
Devias aproveitar mais essa tua veia de escritora.
Ha para ai tanto lixo nas livrarias.
Punhas eles a um canto.
As pedras quando grandes, são dificeis de carregar.E tu pelo q vejo tens carregado algumas. mas
para mim o importante é a estrategia que usas ao carrega-las. Sem duvida muito inteligente.
Mantens uma mente positiva. E essa é tambem a pedra que a Deusa carrega (sim tambem ela,pois no fundo somos todos deuses a experimentar o terreno..), é ver que perante as adversidades mantens estoicamente uma mente positiva, uma mente que resiste, e que sabe que quanto mais alto tem que subir a montanha mais bonito e profundo será o vale que irá vislumbrar.
E essa visão do vale , a visão propriedade unica dos que conseguem resisitir, vale no balanço muito mais do que uma vida plana ,anestesiada, insustentavelmente leve. Sem grandes pedras para carregar montanha acima, mas tambem sem grandes vistas do topo do mundo.
Um dia ....
Um dia, irê-mos os dois subir uma montanha com um pedragulho ás costas , e lá em cima sentamo-nos os dois , como bons amigos, e olharê-mos a lua , rodeada de estrelas, algumas cadentes, outras a tremeluzir. mas todas em sintonia comnosco.Assim como todo o universo.
Ok?
Bjs
Ant Lage
Obrigado Zé e Fernando.
Com o tempo e a exposição que (me) consenti, acabei por ir perdendo a capacidade de escrever algumas coisas. Às vezes, em alturas de fragilidade, de dúvidas e de mágoas, permito-lhes que saiam. Mas fico sempre sem jeito...e isso chateia-me. ...
Mas ok, obrigado por terem gostado. Eu também gostei muito de o ter escrito.
Émièle,claro que com a idade acabamos por saber as manhas da Deusa. E claro que talvez com a idade devessemos aprender aa resistir-lhe e a dizer: queres a pedra, vai lá tu a baixo ou vai bugiar...e ficarmos e ver o Sol lá no cimo....eu cá já te pedi que me ensinasses como fazer. Sei que andas a tentar...mas eu estou numa fase com um cadito de diiculdade de aprendizagem...ou será que dev meter aquela coisa do brro e das linguas??
António, ok. Deixa-me só descansar um cadito...tá bem que te disponibilizas para partilhar o peso comigo...mas eu receio bem que nesta altura acabasses por ter que a transportar sozinho...e sabes bem que eu não sou oportunista.Quando pararmos a ver o vale, as estrelas e a Lua, teresmos que ter partilhado o peso da pedra...e quem sabe, seguir o conselho da Émièle e deixá-la vir por aí abaixo sem nos preocuparmos de imediato em pegar-lhe de novo.
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