Somos todos emigrantes e imigrantes
"A sra tem um marcador que me empreste?"
Não tinha. Na mão negra e calejada trazia um pedaço de cartão, que tinha transformado em cartaz. Entretanto, um amigo tinha um marcador, pedi-lho e entreguei-lho. Ficou a escrever. Perdi-o de vista com a chuva e com a multidão, por entre gente de todas as cores e por entre sons de todos os lugares. Não vi que palavras escreveu. Passaram a fazer parte das dezenas de cartazes improvisados que enchiam o desfile. Afinal, a vida de imigrante é sempre feita de imprevistos e improvisações.
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A de emigrante também.
Há muitos anos, os meus pais emigraram para França. Primeiro foi o meu pai. Foi a salto, como se dizia na altura. Pediu dinheiro emprestado aos meus avós, pois o magro salário não teria dado para pagar ao passador. E foi. Os primeiro meses foram passados num bidon-ville. Queria levar a minha mãe, pois essa era a forma de poder pensar em voltar mais depressa e ele queria voltar depressa. Trabalhava de carpinteiro nas obras e, pouco tempo depois, conseguiu arranjar um pequena casa numa rua de Évry, pequena aldeia, mais tarde tornada cidade, nos arredores de Paris.
Era uma casa pequenina, com uma cozinha no rés-de-chão e um quarto no 1º andar. A minha mãe foi lá ter e eu fiquei com os meus avós. Tempos duros para todos nós. Os meus pais nunca tinham saído da terra. Eu nunca tinha ficado sem os dois (tinha ficado sem o meu pai, anos antes, quando uns homens de negro, bateram à porta, no meio da noite e mo levaram...mas aí tinha sempre o colo da minha mãe. Era um colo feito de lágrimas, mas não deixava de ser colo de mãe).
Quando a minha mãe arranjou trabalho a fazer ménage em casa de "Madames", e as saudades eram muitas, fui lá passar as férias grandes. Tinhamos que dormir os três no quarto minusculo do 1º andar. A casa ficava numa vivenda de uma emigrante italiana, viúva, que vivia em França há décadas. No quarto cabia uma cama de casal onde dormiam os meus pais, um armário pequenino onde ficava a roupa e um divã onde eu dormia. A Mme. Luciani, no 2º dia, deu-nos uma cortina para dividirmos o quarto...a menina já é grandinha, ficam mais à vontade, disse...o meu pai pediu umas tábuas na obra, trouxe-as na bicicleta e improvisou uns suportes de madeira.
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Algumas décadas depois, revi a cortina que dividia o nosso quarto no marcador que emprestei àquele imigrante africano. Revi o olhar triste dos meus pais, quando eu voltava para Portugal ou eles voltavam para lá, depois do Natal, no seu olhar triste, mas sereno. Revi os sons que saíam das janelas dos portugueses, sons de fado e de ranchos folclóricos, nos sons dos batuques ou das canções que entoavam esta tarde. E revi a esperança de encontrar uma vida melhor misturada com a incerteza e com a saudade.
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Somos todos emigrantes e imigrantes. Esta tarde em Lisboa, voltei a ter 10 ou 11 anos e a pedir aos meus pais que não demorassem a voltar. E os meus pais voltaram a explicar-me que tinham que ficar, se queriamos não passar fome e ter direito a uma vida mais decente.
Etiquetas: Isabel Faria
14Comenta Este Post
q bom q foste.
é preciso de testemunhos como os teus nesta causa, tao dificil e tao justa.
Arménio, fui, apanhei uma molha monumental, mas sim, ainda bem que fui.
(o ar sério com que tens comentado...mesmo que seja a brincar...ou mesmo que voltes ao outro, o de me fazer a vida negra e dizer mal e assim...e mesmo que não acredites...gosto de te ter por cá!!).
talvez seja um pouco esquizofrenico e n saiba.
:)
Na volta, vieste ao Troll descobrir-te!!
:))
Neste momento ja nem é preciso emigrar para que se passe fome e dificuldades no País em que nascemos.
Apanha-te uma molha?hehehehe,faz-te bem ás ideias,lool
beijos ;o)
Causas que vale bem apanhar uma molha.
Á muito tempo que não participava numa manifestação, sobre uma causa em que a maioria dos manifestantes eram os principais agentes, a grande maioria eram imigrantes, e não os habituais militantes, que vão a todas (eu inclusivo).
A chuva foi demais, mas não houve uma debandada, como era compreensível.
Foi uma manif espectacular!!!!
Muitos que hoje são contra ontem passaram pela mesma situação dos teus pais só que a memória é curta...
Gandalf,as minhas ideias não precisam de apanhar uma molha...ainda!!!
António, ontem, quando chegeui a casa, e antes de começar a escrever este post, era exactamente esse o registoque lhe pensava dar. Depois, ás vezes, o monitor ganha vida própria e saiu algo de mais pessoal. Mas foi exactaemente isso o que de mais importante se pasou ontem à tarde. Até podiam lá estar muito dos mesmos de sempre, mas estavamos apenas de uma forma solidária. Os agentes eram de facto aqueles por quem e para quem ela foi feita.
GWB, concordo. E apesar da molha, nem me constipei...
Nando, isso é, para mim, o mais chocante. Somos um país de emigrantes. Somos um País de onde sairam milhares de nós à procua de melhores condições de vida e, alguns, do próprio pão. Tal qual os imigrantes de hoje.
E se hoje deres uma volta pelas caixas de comentários dos jornais on line, sais de lá enojado.
a molha foi tao grande q os vistos q se iam conceder ficaram todos molhados.
por isso alias q estavam todos irregulares.
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