Faltas
Já há tanto tempo que nos tinhamos quase perdido o rasto que não se pode dizer que seja sentir a falta. Não faz muito sentido que se trate de falta apenas porque é definitiva, acho eu. Não sei, então, o que é o aperto.
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O Sr. Zé fazia tudo. Cavava, tinha casado. Fazia a barba, tinha um filho. E ordenhava as vacas. Eu passava horas a ver o Sr. Zé a ordenhar as vacas. Vais já ao leite, Isabel? Vou...para ver o bezerrito novo, mãe. Não era.
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Ainda criança tinha caído de uma oliveira. Contavam uma história mais ou menos trágica que falava de desconhecimento e de falta de assistência. E o Sr. Zé, ainda menino, ficara sem um braço.
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Ficava horas a ver como ele empurrava a vaca com o ombro, pegava no balde, fazia o gesto da ordenha, sempre o mesmo gesto, a não ser quando ela se mexia e ele afrouxava para lhe fazer um gesto de acalmar. Ou enxotava as moscas. Ficava sempre de olhos arregalados quando ele, por momentos, parava para coçar o braço que tinha ficado preso ao ramo da oliveira.
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O Sr. Zé esteve naquele meu tempo em que eu pensava que nada que perdêssemos nos iria fazer falta.
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Raramente nos encontrámos durante os últimos vinte e tal anos. Eu saí de casa dos meus pais muito cedo. Ele já tinha ido viver para outra casa mais longe e levado as vacas e o banco de madeira. Depois sairam da terra e vieram viver para Lisboa e só os encontrava, muito esporadicamente, quando, por uma coincidência qualquer, iamos "à terra" no mesmo dia. Falta não pode ser, portanto.
Sempre que os via, nas visitas rápidas, eles estavam tristes. Nunca entendi muito bem se sentiam falta da terra, se das vacas ou se nunca encontraram uma ou as outras em Lisboa. Mas, às vezes, tinham uma lágrima teimosa ao canto do olho.
Um dia, numa dessas visitas, disse-lhe que sempre o tinha admirado por ele conseguir fazer tudo como se não lhe faltasse uma parte dele (não deve ter sido assim a frio...até porque raramente lhe falavamos do seu braço...mas não me recordo das minhas palavras. Só das dele). Disse-me que tudo não. Nunca mais subi a uma oliveira. A árvore nenhuma...mas não sei se porque perdi o braço ou a confiança.
Na altura, já estava no meu tempo em que as faltas de partes de nós se sentiam. Deve ter sido a confiança, Sr. Zé, pensei. Acho que não disse.
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Deve ser isso. O Sr. Zé é do tempo em que eu ainda não sabia que a perda da confiança nos impede de subir as oliveiras...ou que não dá para coçar, quando se perde.
É falta mesmo, afinal.
Mas creio que o Sr. Zé vai finalmente reencontrar o banquito de madeira da ordenha. Que tanto falta lhe deve ter feito. Menos mau.
Etiquetas: Isabel Faria
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Belo texto!
Também off post, já tinha encontrado o Troll há uns tempos, só que por preguiça (acho) não o tinha "linkado" no Cantigueiro. Agora já está.
Obrigado Samuel.
Pois a preguiça...eu também já o tinha descoberto desde aquela altura em que "puxei pelos pergaminhos" quanto ao outro 11 de Setembro e só há dois dias quando a vacina da gripe me...engripou e me obrigou a ficar de castigo em casa o coloquei ali ao lado. Ainda bem que não se importa e obrigada pela reciprocidade. Ah, e tal como escrevi no post que aqui escrevi e em que falei no Cantigueiro (não sei fazer um link na caixa de comentários...já me ensinaram milhares de vezes, sem sucesso, mas está ali um cadito em baixo), o seu humor faz-me bem. Ainda sorrio só de pensar no cogumelo...
Domingo de manhã.
Vir aqui ler-te, pode ser "perigoso".
Tenho uma enxorrada contida, talvez mesmo diluvio, e ler um texto em que cada palavra é chave de portão..."quessdizer"...minha amiga.
Bom domingo!
Amigo, aqui ao Domingo de manhã??
Não queria abrir portões..."quessdizer", acho eu.
Um bom Domingo para ti também. E nem sempre as enxorradas são uma coisa má...às vezes aliviam o céu e impedem os dilúvios.
Zabelinha, já cá tinha estado ontem, mas como tinha muito que fazer, deixei para hoje deixar aqui o meu sentir.
Começo pela tua resposta relativamente às enxorradas e aos dilúvios. Lembraste-me as cheias do Tejo, essa veia que nos atravessa e que tanto te diz e que a mim me ligou e me ensinou a ver as coisas de uma outra forma. As cheias e uma descrição que delas tenho, dum habitante da Ribeira de Santarém, foi dos maiores ensinamentos que tive, depois de por lá ter andado, no salvamento de pessoas e bens. nessa descrição, era-me referido acima de tudo, o bem que elas representavam, para a renovação da vida.
Quanto ao teu escrito, só te posso agradecer, o facto de o teres feito e publicado. Estou contigo!
Tens razão José, quem nasceu no Ribatejo a prendeu a convier com as enxorradas e a vê-las não apenas como desastre mas como renovação. Algumas vezes ao longo da vida também me lembrei delas assim. E percebi que tinha aprendido algo com elas.
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