Pedaços de dia
"Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
E é assim como uma fisgada
No membro que já perdi"
Dizia-me ontem o meu filho, com uma voz estranha que procurava disfarçar, que sentiu um nó na garganta e um aperto no peito quando foi esvaziar o cacifo do Camões. "Acho que foi tristeza. É como de me tivesse e despedir de um bocadinho de mim...um bocadinho grande".
Com o mesmo tom na voz e a mesma tentativa de disfarçar, assegurei-lhe que temos uma capacidade regenerativa assinalável...um dia qualquer recuperamos o bocadinho, mesmo que seja grande, que deixamos nos cacifos, e ficamos de novo mais ou menos inteiros para continuar...
Não me deixou continuar "Não vês a contradição entre o que estás a dizer e o mais ou menos que usaste, mãe??!!".
Vi.
Afastei-me de mansinho e aproveitei para estender a roupa, não fosse o nó vencer e anular definitivamente a tentativa falhada.
...
À noite, um amigo dizia-me que anda há anos à procura de uns pedaços que deixou algures numa relação daquelas que a gente se convence que são para sempre. Ainda pensei em dizer-lhe que a gente pensa que todas são para sempre...e ainda pensei em usar a teoria da regeneração.
Contive-me a tempo. Não havia roupa para estender no meio do Campo de futebol dos putos no Campo Santana e se não tinha conseguido convencer o meu filho que tem 18 anos...como é que o ia convencer a ele. Ou a mim. Decidi falar no jogo da Alemanha com a Croácia.
...
Quando voltava para casa, ali mesmo juntinho ao portal que fica do lado de lá da porta de entrada, lembrei-me de cacifos, de pedaços. A seguir à tristeza, um dia chega a saudade. A regeneração total é uma treta que nem convence um miúdo de 18 anos. A porta ainda estava fechada. O carro do meu amigo já se tinha afastado o suficiente. Fui a pé ver o rio ao longe. Depois do rio costuma estar o mar. Ao longe.
...
Etiquetas: Isabel Faria
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Para lá do, "mar", como eu te entendo, gostaria que me esplicasses o que se passa com o Camões, Será que as obras, foram para mascarar a desocupação?
Um beijo para ti e um abraço ao João Pedro.
Cá está a Isabel.
A que conheci no nosso primeiro blog e de quem gosto tanto quando escreve assim.
Nós despedimo-nos de bocadinhos de nós, sim. O JP tem toda a razão. O que não quer dizer, que esses bocadinhos não fiquem também dentro de nós. É isso viver, e ele já o sabe. É o tempo a passar e a gente guardar na memória o que passou de bom e de mau. É por termos memória que a vida é suportável (às vezes é ao contra´rio, é verdade)
Mas, tal como com as pessoas que amávamos e desaparecerem, os tempos bons e importantes ficam connosco enquanto os lembrarmos.
E isso conta. Muito!
A vida é assim amiga. Todos os dias, como o Sol, morremos um bocadinho. Para renascermos , também como o Sol, no dia seguinte. Só assim nos transformamos. Só assim pode haver renovação, vida.
Mas por que carga de água havemos de pensar que perdemos alguma coisa? Nós que só a nós próprios temos, e aos amigos e laços que vamos criando...
De resto, o mundo é, também, nosso.
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